Pular para o conteúdo principal

Ao invés de alianças, pantufas!


 Os enlaces matrimoniais na Idade Média.
Prof. Pablo Michel Magalhães
Nos contos de Grimm, Cinderela, ao ouvir as 12 badaladas do relógio, precisa correr, fugir do baile e dos olhos do príncipe. O encanto dado pela fada-madrinha acabava à meia noite, e seu vestido e sua carruagem voltariam a ser trapos e abóbora novamente. Em sua fuga desesperada, um de seus sapatos de cristal fica para trás. Sem parar, ela resolve não resgatar o calçado, e continua a correr. O príncipe, desolado, pega a peça da vestimenta da amada e guarda-a, como última lembrança de alguém inesquecível.

Eis aí um dos contos mais conhecidos em todo o mundo. Cinderela, ou Gata Borralheira, corresponde a um clássico da cultura popular, reproduzido em peças de teatro, filmes, pinturas, livros. Ao compilar vários contos populares, por meio da coleta de depoimentos de camponeses europeus (os Grimm iam até as fazendas e demais possessões rurais, ouvir as histórias moralizantes que as mulheres contavam aos filhos), os irmãos Jacob e Wilhelm imortalizaram as histórias contadas através da escrita.


Drew Barrymore, no filme Para sempre Cinderela, como a protagonista.


Interessante é notar que, para além de histórias com uma moral no fim (dizem que os Grimm "adocicaram" os contos, excluindo algumas partes mais chocantes. Tratamos disso no texto Branca de Neve, Cinema e os Irmãos Grimm: cultura popular num cinema pop), os contos compilados traziam consigo uma boa carga dos costumes medievais, praticados em larga escala no ambiente rural, comuns mesmo até o século XIX (ver Uma Longa Idade Média, do historiador Jacques Le Goff).

Tomaremos, como exemplo, um costume bastante recorrente na França, Inglaterra, Alemanha e Itália, relacionado ao ato de dar um sapato.

Até a instituição do casamento cristão na Europa medieval, os povos germânicos já possuíam rituais que celebravam enlaces matrimoniais. De um modo geral, o rito era realizado na casa da noiva, e celebrado pelo patriarca da família (o pai da moça). Era de bom tom que a noiva entregasse ao futuro esposo um presente simbólico (uma grinalda de flores, por exemplo), que representaria seu apreço pela pessoa desposada. Sob as bênçãos dos familiares, todos presentes em volta dos noivos, a moça entrega ao rapaz seu sapato (ou pantufa, calçado muito utilizado no período medieval), com o pedido (geralmente feito pelo pai da noiva) de que o esposo cuidasse do bem estar de sua mulher. Na Inglaterra medieval, este ritual era conhecido como handfeste, tradição mergulhada na cultura céltica (que veio a permear boa parte da Europa Continental, visto que o povo celta migrou por várias regiões do Velho Mundo).


O Casamento dos Camponeses, de 1567, de Pieter Brueghel, o Velho


Dar o sapato era, também, conceder a posse a uma pessoa. Por exemplo, na festa após o casamento, havia um jogo bastante praticado, onde escondia-se o sapato da noiva, e os convivas deviam procurá-lo. Para aquele que encontrasse, era concedido o direito de ser o "esposo por uma noite" da moça. Até que ponto esse direito ia (se apenas como algo figurativo, ou concreto) nada sabemos.


Há ainda outros exemplos sobre o ato de dar o sapato. Em uma crônica medieval, cujo estilo pode ser enquadrado como um Exemplum (conto moralizante medieval, envolvendo eventos da vida cotidiana ou sobrenaturais atribuídos a santos), utilizada pelo historiador francês Jean-Claude Shmitt em seu livro O corpo das imagens: Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média, há a história de um jogral que vai a uma igreja e toca alguns acordes do seu alaúde a uma imagem do Cristo (trata-se do Volto Santo di Lucca, onde Jesus crucificado está vestido e coroado como rei). Como forma de gratidão, a imagem joga-lhe sua pantufa, simbolizando a escolha do jogral como preferido pela imagem.

Iluminura do século XVI, de Hans Burgkmair, mostrando a cena da lenda.


No caso do conto da Cinderela, o sapato deixado para trás pela moça tem um significado mais profundo do que apenas o de esquecimento durante a fuga desabalada. A pantufa de cristal (Cinderela dificilmente teria usado sapatos de salto alto, algo estranho no ambiente rural onde vivia, na fábula) representa, simbolicamente, a preferência em seu coração pelo príncipe.

Com a cristianização das práticas matrimoniais, muito dos costumes tribais, praticados em larga escala no ambiente rural pelos camponeses, foram expurgados, em detrimento do rito oficial católico. No caso das pantufas, entre os nobres, a Igreja introduziu o costume da troca de anéis (tradição milenar hindu, também praticada pelos romanos, porém apenas a mulher utilizava a aliança, como símbolo de "pertencimento" a um homem; a partir do século IX, o Cristianismo passou a exigir que homem e mulher as utilizassem, como símbolo mútuo de amor).

(Texto do Prof. Pablo Michel Magalhães, da redação d'O Historiante).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Símbolos e Significados

A palavra "símbolo" é derivada do grego antigo  symballein , que significa agregar. Seu uso figurado originou-se no costume de quebrar um bloco de argila para marcar o término de um contrato ou acordo: cada parte do acordo ficaria com um dos pedaços e, assim, quando juntassem os pedaços novamente, eles poderiam se encaixar como um quebra-cabeça. Os pedaços, cada um identificando uma das pessoas envolvidas, eram conhecidos como  symbola.  Portanto, um símbolo não representa somente algo, mas também sugere "algo" que está faltando, uma parte invisível que é necessário para alcançar a conclusão ou a totalidade. Consciente ou inconscientemente, o símbolo carrega o sentido de unir as coisas para criar algo mair do que a soma das partes, como nuanças de significado que resultam em uma ideia complexa. Longe de objetivar ser apologética, a seguinte relação de símbolos tem por objetivo apenas demonstrar o significado de cada um para a cultura ou religião que os adotou.

Como se constrói uma farsa?

26 de maio de 2013, a França produziu um dos acontecimentos mais emblemáticos e históricos deste século. Pacificamente, milhares de franceses, mais de um milhão, segundo os organizadores, marcharam pelas ruas da capital em defesa da família e do casamento. Jovens, crianças, idosos, homens e mulheres, famílias inteiras, caminharam sob um clima amistoso, contrariando os "conselhos" do ministro do interior, Manuel Valls[1]. Voltando no tempo, lá no já longínquo agosto de 2012, e comparando a situação de então com o que se viu ontem, podemos afirmar, sem dúvida nenhuma, que a França despertou, acordou de sua letargia.  E o que provocou este despertar? Com a vitória do socialista François Hollande para a presidência, foi colocada em implementação por sua ministra da Justiça, Christiane Taubira,  a guardiã dos selos, como se diz na França, uma "mudança de civilização"[2], que tem como norte a destruição dos últimos resquícios das tradições qu

Pai Nosso explicado

Pai Nosso - Um dia, em certo lugar, Jesus rezava. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou a seus discípulos”. È em resposta a este pedido que o Senhor confia a seus discípulos e à sua Igreja a oração cristã fundamental, o  Pai-Nosso. Pai Nosso que estais no céu... - Se rezamos verdadeiramente ao  "Nosso Pai" , saímos do individualismo, pois o Amor que acolhemos nos liberta  (do individualismo).  O  "nosso"  do início da Oração do Senhor, como o "nós" dos quatro últimos pedidos, não exclui ninguém. Para que seja dito em verdade, nossas divisões e oposições devem ser superadas. É com razão que estas palavras "Pai Nosso que estais no céu" provêm do coração dos justos, onde Deus habita como que em seu templo. Por elas também o que reza desejará ver morar em si aquele que ele invoca. Os sete pedidos - Depois de nos ter posto na presença de Deus, nosso Pai, para adorá-lo