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Inversões de um intelectual orgânico

Se alguém experimentar falar hoje, em alto e bom tom, que a adoção de crianças por casais homossexuais não visa, prioritariamente, mais à deturpação do conceito essencial de família do que a propiciar lares para crianças enjeitadas, é bem provável que irá ouvir umas boas imprecações – isto é, se não for linchado no meio da rua. Se esse mesmo alguém abrir qualquer caderno econômico de qualquer jornal de grande circulação, é certo que encontrará pouquíssimas análises que apontem os malefícios da draconiana intervenção estatal no campo econômico, mas, em contrapartida, toneladas de propagandas (oficiais e oficiosas) às medidas econômicas do governo que “blindam” o País contra as crises capitalistas. E, por último, não encontrará uma única propaganda de cigarros, mas decerto topará com um ou outro artigo de alguma figurinha importante e badalada falando sobre a “caretice” de se proibir o uso de maconha e que tais.
Por que digo tudo isso? Para ilustrar como o trabalho de conquista de hegemonia cultural da esquerda foi bem-sucedido. E não é necessário ter um profundo conhecimento de história, filosofia, política ou vida prática para notar que isso é algo claríssimo: basta ter uns rudimentos de raciocínio e perspicácia. Esse trabalho tem sido tão bem-sucedido que, de fato, quase todas as teses propaladas pela Esquerda nos últimos 150 anos são, hoje, axiomas praticamente irretorquíveis. Há exemplos muito atuais e abundantes disso: o bárbaro ataque cometido contra S.A.I.R. Dom Bertrand de Orleans e Bragança, a multitude de criaturas raivosamente espumantes exigindo a cabeça do professor Carlos Ramalhete, a invasão de uma paróquia carioca durante a tal Marcha das Vadias, as dantescas propostas de alteração do Código Penal feita por um grupo de “juristas”, a recente decisão do Conselho Federal de Medicina em prol de uma “morte digna” para pacientes em estado terminal, et cœtera.

No entanto, há quem defenda que, ao contrário, a Esquerda não mais detém a hegemonia cultural. Vladimir Lenin Safatle, um exemplo de intelectual orgânico uspiano, publicou recentemente um artigo na revista (sic) Carta Capital intitulado “A perda de hegemonia”. De acordo com nosso Lenin dos trópicos: “Pela primeira vez em décadas a esquerda é minoritária no campo cultural.” A tese central do texto pode ser encontrada no seguinte trecho:
Poderíamos acreditar que a perda de tal hegemonia seria resultado direto da queda do Muro de Berlim. Sem desmerecer o fenômeno, não é certo, no entanto, que ele tenha papel tão determinante. Pois vale lembrar como a esquerda cultural brasileira estava longe de ser a emulação do centralismo do Partido Comunista, com sua orientação soviética. Na verdade, as causas devem ser procuradas em outro lugar.

Primeiro, há de se lembrar como, desde o fim dos anos 80, as universidades brasileiras não conseguiam mais formar professores dispostos a desempenhar o papel de intelectuais públicos. Os intelectuais que tínhamos vieram da geração que entrou na universidade nos anos 70. Geração que viveu de maneira brutal a necessidade de mobilização política. As gerações que vieram compreenderam-se com uma certa timidez. Elas, em larga medida, foram marcadas pelo desejo de agir no âmbito mais restrito da universidade.

Segundo, há de se colocar a perda da hegemonia cultural como um dos sintomas da era Lula. Do ponto de vista político, o esforço da classe intelectual brasileira parece ter se esgotado com a eleição do ex-metalúrgico. Boa parte dos descaminhos do governo foi colocada na conta da legitimidade dos intelectuais que um dia o apoiaram ou que continuaram apoiando. O simples abandono do apoio não foi uma operação bem-sucedida. Como os intelectuais não tiveram discernimento suficiente para imaginar o que poderia ocorrer? Por outro lado, a repetição reiterada do lado bem sucedido do governo soava, para muitos, como estratégia para diminuir a força crítica diante dos erros, que não eram mais comentados no espaço público, devido ao medo de instrumentalização pela mídia conservadora.
A descrição do estado de coisas oferecida pelo Sr. Safatle decerto se refere a um lugar que nada tem a ver com o Brasil. A defesa de que “a esquerda cultural brasileira estava longe de ser a emulação do centralismo do Partido Comunista” ignora completamente o grande apoio logístico, propagandístico e financeiro fornecido pelos serviços secretos de diversos países comunistas, inclusive a própria KGB, para a nossa “esquerda cultural”. Além disso, ignora completamente a relação íntima com intelectuais estrangeiros cujos trabalho eram completamente delineados pelo Politburo soviético.

Além disso, o fato apontado de que “as universidades brasileiras não conseguiam mais formar professores dispostos a desempenhar o papel de intelectuais públicos” abarca um equívoco bastante perigoso: o de ignorar a atuação desses pretensos “intelectuais públicos”. Ao invés de se tornarem intelectuais públicos, esses indivíduos se encontram em lugares em que sua atuação é muito mais eficiente (e, por isso mesmo, perniciosa): nas escolas de nível fundamental e médio, públicas e privadas. O altíssimo grau de ideologização e instrumentalização doutrinária do ensino brasileiro é aterrador, e é justamente o que tem garantido a hegemonia cultural da Esquerda no último meio século, pelo menos. São os estudantes transformados por essa “linha de montagem” marxista que, ao chegarem aos bancos das universidades, passarão de vítimas a predadores ideológicos. Dessa forma, beira a desonestidade dizer que a universidade – e, lato sensu, o ensino no geral – é um “âmbito mais restrito” de atuação. Um dos grandes artífices dessa façanha foi Louis Althusser, que faz parte do cânon vermelho que o Sr. Safatle e outros tantos rezam fervorosamente.
O artigo, em suma, é um grande desfile de mentiras deslavadas. Não sei em que medida o Sr. Safatle dá credibilidade a elas: em caso positivo, isso faria dele um ingênuo professor universitário que não possui habilidade para analisar fatos históricos e sociais; em caso negativo, todos os argumentos utilizados não passam de ideias meticulosamente arquitetadas com o objetivo de ludibriar leitores incautos. Em ambos os casos, trata-se de uma falsificação dos fatos. E, como sempre gostamos de lembrar, contra factum non argumentum est.
 

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