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Seria o liberalismo uma ideologia a serviço de empresários?


size_590_eike-dilma-sergio-cabral.jpgOs inimigos do livre mercado adoram estereotipar o liberalismo como sendo uma ideologia totalmente a soldo dos interesses dos empresários, sobretudo do grande empresariado.  De maneira caracteristicamente conspiratória, eles se apressam em descrever o liberalismo como sendo um conjunto de teses criadas ad hoc para beneficiar a plutocracia: impostos baixos ou nulos, ausência de leis trabalhistas, ausência de regulamentações sobre a economia, oposição à tributação de quem já possui um elevado patrimônio, oposição às leis antitruste etc. 
Com efeito, fazendo uma abordagem parcial e tendenciosa do assunto, a hipótese de fato parece verossímil.  No entanto, ao se esquadrinhar mais detidamente a realidade, é possível constatar que este ataque não possui absolutamente nenhum fundamento.
Para começar, o liberalismo é simplesmente uma filosofia que defende aqueles princípios normativos universais e simétricos que permitem que cada indivíduo ou grupo de indivíduos possa satisfazer seus objetivos de maneira voluntária, cooperativa e mutuamente benéfica para outros indivíduos.  A materialização prática desta saudável premissa implica que as relações humanas têm necessariamente de estar coordenadas tendo por base o respeito à propriedade privada e aos contratos voluntariamente firmados.  Implica também que nenhuma pessoa tem o direito de iniciar violência contra a propriedade privada alheia e de se esquivar das responsabilidades que tenham assumido (o não-cumprimento de um contrato).  Por conseguinte, é fácil constatar, desde o início, que não é plausível dizer que o liberalismo está a serviço da classe empresarial, pois os direitos e deveres fundamentais são os mesmos para todos os indivíduos, não importa quem sejam e nem qual a posição social que ocupam.
Tendo entendido isso, os inimigos do liberalismo recorrem à seguinte réplica: se um liberal defende direitos e deveres simétricos para todos é porque ele sabe que essa igualdade jurídica beneficia apenas os empresários, em detrimento do resto da sociedade (por qualquer que seja o motivo: seja porque eles são mais hábeis, ou mais preparados, ou mais ricos).  Toda aquela explicação delineada acima seria apenas um subterfúgio para consolidar um regime de exploração empresarial.  Afinal, não se pode tratar de maneira igual aqueles que são diferentes.
Demonstrar que o império jurídico da propriedade privada e dos contratos voluntários é algo benéfico para todos iria alongar desnecessariamente a discussão; a este respeito basta dizer que, se o mercado não é um jogo de soma zero — e não é —, então todos podem sair ganhando desta cooperação social, por mais que algumas pessoas (as mais perspicazes) sejam capazes de obter mais benefícios desta cooperação do que as outras pessoas.  O fato é que todas têm potencial para sair ganhando (umas mais; outras nem tanto).  O objetivo deste artigo é refutar a hipótese de que todas as propostas liberais são, no fundo, um mero disfarce dialético criado para ajudar o empresário a lucrar impunemente.
Logo de início, esta acusação se depara com um problema insolúvel: os interesses dos empresários não são nada homogêneos.  Por exemplo, dentro de uma mesma área da economia, duas empresas podem competir e batalhar ferozmente até que uma delas desapareça (por exemplo, duas empresas de telefonia celular ou de sistemas operacionais).  Dentro de um mesmo sistema econômico, diferentes indústrias podem reproduzir esta feroz concorrência para ganhar os clientes das outras (por exemplo, empresários que fabricam computadores versus empresários que fabricam máquinas de escrever).  Mais ainda: dentro da economia global, os interesses gerais de alguns capitalistas podem estar em conflito com os interesses de outros capitalistas (por exemplo, quando alguns especuladores atacam as ações de uma empresa é evidente que os interesses dos especuladores são absolutamente contrários ao interesses da empresa contra a qual eles estão especulando).
Se os liberais realmente querem defender acirradamente os interesses de empresários e capitalistas, então eles inevitavelmente entrarão em colapso em decorrência de um curto-circuito esquizofrênico.  Afinal, exatamente os interesses de quais empresários ou capitalistas eles irão defender a cada momento?  Os que estão em melhor situação financeira?  Não faria sentido, pois, dado que os liberais coerentes defendem a concorrência livre e irrestrita, nada garante que este empresário não venha um dia a perder sua boa situação financeira.
Com efeito, dado que não há a mais mínima garantia de que todos os empresários serão beneficiados em um sistema de livre concorrência, a lógica diz que a maioria deles não terá motivos para defender os princípios do liberalismo.  E a realidade é que o livre mercado beneficia apenas aqueles empresários competentes, aqueles capazes de investir adequadamente seu capital de modo a satisfazer, melhor do que seus concorrentes, as variadas e variáveis demandas dos consumidores.  E de satisfazer continuamente estas demandas. 
O livre mercado, portanto, é um arranjo bastante incerto, hostil e variável, no qual poucos empresários podem se sentir permanentemente confortáveis.  O que a grande maioria dos empresários realmente deseja é que o estado lhes proteja da concorrência e lhes assegure uma fatia garantida de lucro, que lhes permita desfrutar a vida sem dores de cabeça e sem constantes preocupações acerca de como melhorar seus serviços aos consumidores.  O que os empresários realmente desejam são tarifas protecionistas que os protejam da concorrência de importados e agências reguladoras que cartelizem o mercado e impeçam a entrada de novos concorrentes. 
Se os liberais estivessem a serviço do empresariado, suas principais reivindicações consistiriam em exigir que o estado criasse regulações e aumentasse seus gastos de forma a maximizar o lucro empresarial.  Mas o que ocorre é justamente o oposto: os liberais desejam abolir todas as regulações e todos os gastos estatais que resultam em altos lucros para determinada casta corporativa.
Fazendo uma lista nada exaustiva, os genuínos liberais se opõem às seguintes prebendas tão ao gosto de vários empresários acomodados:
1) Políticas de preços mínimos, subsídios e pacotes de socorro.
Em um livre mercado, todas as empresas devem estar sujeitas aos desejos dos consumidores.  Isso implica que nenhum empresário ou capitalista tem sua renda futura garantida.  Suas rendas decorrerão exclusivamente de suas capacidades de atender os desejos dos consumidores de forma mais satisfatória que seus concorrentes.  Este princípio, é claro, não vale apenas para empresários e capitalistas, mas também para todos os agentes econômicos (daí a tão difundida ideia de que somos "escravos do mercado"). 
Consequentemente, os liberais se opõem a todos os tipos de falcatruas estatistas criadas com o intuito de burlar esta servidão dos empresários aos consumidores.  Exemplos típicos destas falcatruas são as políticas de preços mínimos (o estado compra as mercadorias de um empresário a preços mais altos do que estão dispostos a pagar os consumidores), os subsídios (os pagadores de impostos são obrigados a financiar um projeto empresarial com o qual não necessariamente concordam), e os pacotes de socorro (empresas falidas, que destruíram mais riqueza do que foram capazes de criar e que, de acordo com os desejos claramente manifestados pelos consumidores — que não mais compram seus produtos —, deveriam desaparecer, são salvas pelo governo). 
Empresários gostam de políticas de preços mínimos, de subsídios e de pacotes de socorro.  Os liberais, não.
2) Barreiras de entrada ao mercado.
Se o empresário deve, a todo o momento, servir o consumidor de forma mais satisfatória que seus concorrentes, então é evidente que sua situação dentro da economia de mercado está continuamente em perigo.  Mesmo que ele não esteja visualizando nenhuma ameaça ao seu domínio, isso não significa que ninguém esteja preparando um plano de negócios que a curto, médio ou longo prazo termine por destroná-lo. 
Exatamente por isso, os empresários que já estão estabelecidos no mercado adoram todo e qualquer tipo de barreiras de entrada que impeçam que outros empresários com novas ideias os desbanquem.  Os liberais, por sua vez, se opõem a toda e qualquer regulamentação que bloqueie a livre concorrência, exatamente porque é a livre concorrência que permite desbancar empresários menos eficientes.  Licenças, burocracia, regulamentações que imponham opressivos custos iniciais, concessões exclusivas e monopolistas, e até mesmo patentes — tudo isso é combatido pelos liberais. 
Empresários já estabelecidos no mercado adoram restrições à concorrência.  Os liberais as detestam.
3) Tarifas de importação, desvalorização cambial e outras barreiras protecionistas
Outra forma de proteção contra a concorrência são as tarifas de importação, as quotas e outras barreiras protecionistas, como a desvalorização cambial.  Este ferramental mercantilista blinda as empresas nacionais contra a concorrência estrangeira, assegurando aos empresários que se especializaram em atender o mercado interno a continuidade de seu reinado. 
Dado o tamanho da economia mundial em relação a uma economia nacional qualquer, basta apenas imaginar a enorme inquietação que sente um empresário nacional quando, de repente, as barreiras comerciais são abolidas e ele se depara com toda uma cornucópia de potenciais concorrentes estrangeiros.  Daí que inúmeros empresários adorem o protecionismo comercial e o câmbio desvalorizado, ao passo que os liberais sempre foram marcadamente pró-livre comércio e pró-moeda forte. 
Novamente, empresários e liberais estão em lados completamente opostos.
4) Crédito artificialmente barato
Capitalistas e empresários têm, e sempre tiveram, uma relação passional com o crédito barato.  Muitos empresários vendem a maior parte de suas mercadorias a crédito (imóveis, eletrodomésticos, automóveis etc.), de modo que, quanto mais crédito, mais vendas.  Da mesma maneira, para montar uma empresa, ou para multiplicar seus rendimentos, é necessário capital, e uma forma de obter esse capital de maneira acessível é com empréstimos bancários artificialmente baratos.  Por sua vez, os empresários provedores deste crédito artificialmente barato e abundante — os banqueiros — também obtêm lucros extraordinários em decorrência de seu agora maior volume de negócios. 
Sendo assim, quase todos os empresários adoram quando o governo, por meio de seu Banco Central, fornece mais dinheiro aos bancos para que estes expandam o crédito a custos mais baixos.  E adoram ainda mais quando o próprio governo, por meio de algum banco estatal de fomento, fornece este crédito.  Os liberais, ao contrário, condenam as manipulações inflacionistas do crédito e, para acabar com elas, chegam até mesmo a propor o abandono da moeda fiduciária e a abolição destes monopólios estatais chamados Bancos Centrais, que tanto protegem e beneficiam o sistema bancário. 
Outro ponto no qual empresários e liberais batem de frente.
5) Planos de estímulos e obras públicas
Uma possível consequência das expansões creditícias é o endividamento estatal decorrente de projetos faraônicos despropositados, como obras públicas megalomaníacas.  Muitas destas obras são inventadas com o intuito de gerar empregos e "estimular" a economia.  As empresas adoram tais obras porque elas incrementam suas receitas e seus lucros (não apenas aquelas que são diretamente beneficiadas pelos contratos estatais, mas também aquelas que saem ganhando em decorrência do estímulo temporal propiciado pelo aumento do gasto agregado).  Com efeito, tais obras públicas nada mais são do que uma forma de subsídio e, como todos os subsídios, elas são repudiadas frontalmente pelos liberais.
Outro exemplo em que não há nenhuma coincidência de opiniões entre liberais e empresários. 
Conclusão
O fato de os liberais defenderem um arranjo jurídico no qual os melhores empresários podem prosperar e enriquecer não significa que estejam a serviço destes, uma vez que, em tal arranjo, os empresários que forem ineficientes — e que não podem recorrer aos privilégios e protecionismos estatais — estão condenados ao fracasso.  Mais ainda: nada impede que os empresários bem sucedidos de hoje se transformem nos arruinados de amanhã.
Os liberais defendem este arranjo porque ele é o que melhor permite que todos satisfaçam suas necessidades: os melhores empresários enriquecem somente após terem gerado muito valor para os consumidores. 
A realidade, portanto, é exatamente o oposto do que parece: são os intervencionistas, contrários ao liberalismo, que recorrem a todos os tipos de argúcias estatistas para solapar a soberania do consumidor e, consciente ou inconscientemente, encher os bolsos dos empresários protegidos pelo governo.

Juan Ramón Rallo é diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.

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