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A santidade é possível?


A Sagrada Escritura diz que "sem a santificação ninguém verá a Deus" (Hb 12,14)Nós, católicos, cremos não só que a santidade é possível, mas também que esta é a vocação de todos os batizados. A Constituição Lumen Gentium (download aqui) falou sobre essa vocação universal à santidade (cap. 5), mas trata-se de uma realidade que nem sempre é bem conhecida, ao menos pela maioria do povo católico.

Já os protestantes creem que nenhum ser humano, - nem mesmo o temente a Deus, - poderá jamais chegar a ser santo. Aliás, para eles, todo cristão é salvo somente pela fé (Sola Fide), e nunca pela santidade. A doutrina de Lutero a esse respeito diz que não seremos santos nem mesmo no Céu: entraríamos nas Moradas Celestes ainda miseráveis e destituídos de santidade, mas seríamos admitidos por Deus porque a fé nos seria imputada como justiça.

A Igreja Católica, porém, crê que no Céu só entram os santos. Por isso é que cremos que uma pessoa temente a Deus e que morreu sem pecado mortal, mesmo sendo falha ao morrer já está salva, embora não vá diretamente para o Céu. É preciso que passe por um processo de purificação, que chamamos Purgatório, para que se santifique até atingir as condições de entrar no Céu. É por isso que rezamos pelos falecidos, para auxiliá-los nesse processo, e cremos que essas nossas orações são muito importantes.

E cremos ainda mais: que é possível sermos santos já nesta vida. Sim, existem pessoas que alcançam a tremenda Graça de serem santas já aqui, agora, e em tudo amarem a Deus de todo o seu coração, de todo o seu entendimento, com todas as suas forças e de toda a sua alma, - o que representa, afinal, a melhor definição do santo: alguém que verdadeiramente ama a Deus sobre todas as coisas.

Ocorre de estarmos tão acostumados às nossas próprias fraquezas que tendemos a duvidar que seja possível a alguém ser realmente santo já aqui neste mundo. Costumamos nos usar como espelho para olhar o próximo, o que é a raiz da maioria das discórdias.

A prova de que a santidade é possível, porém, é o testemunho de vida dos mártires. Qual é a situação de todo aquele que escolheu morrer por amor a Cristo? Essa pessoa tinha, de um lado, toda a sua vida: mulher ou marido, filhos, casa, saúde, familiares, amigos, os seus projetos, sua vocação profissional, seus sonhos, seus prazeres, suas alegrias... Tudo o que possuía e toda a expectativa do que um dia poderia possuir. E, de outro lado, estava Deus. - E essa pessoa, que se entrega ao martírio, prefere Deus. Definitivamente, concreta e literalmente acima de todas as coisas, essa pessoa mostra que ama a Deus sobre todas as coisas, e O escolhe.

Assim vemos que é possível este Amor pleno, perfeito, esta entrega total, este Amor santo e perfeito. E a santidade é exatamente isso: alcançar e viver o perfeito Amor, - pois Deus é Amor, - entregando-se  a ele plenamente.

Assim, os mártires são exemplo. Mas o que dizer dos santos que não são mártires? Estes igualmente alcançaram o mesmo verdadeiro Amor-caridade já aqui na Terra, e também demonstraram isso em suas vidas. Não é difícil ver tais exemplos na vida e obra de um S. Francisco de Assis, uma Beata Teresa de Calcutá, uma Sta. Terezinha do Menino Jesus e da Sagrada Face e tantos, tantos outros.

Durante muito tempo, especialmente a partir do século XVII, existiu na Igreja a ideia de que a santidade era algo para poucos, talvez para monges e religiosos que viviam em seus votos a busca dos estados de perfeição, e que para o leigo era praticamente impossível. Viveu-se durante muito tempo essa ideia de que a santidade era restrita a poucos, e que o povo em geral, embora tivesse acesso à salvação divina, "não precisava" ou não teria condições para viver a santidade.

O Concílio Vaticano II ajudou a desfazer essa ideologia fabricada, que realmente nunca fez parte da doutrina  da Igreja e nem existia em suas origens. Assim, a Igreja resgatou e reitera a verdade evangélica que afirma: todo batizado é chamado à santidade. O Purgatório é como um castigo misericordioso de Deus para aqueles que não fizeram a sua “lição de casa”. É destinado às pessoas que se faleceram em estado de Graça mas não se entregaram totalmente a Deus, não fizeram tudo o que poderiam para servi-Lo, não buscaram a sua Vontade, apegaram-se a prazeres e objetos deste mundo, que no fim se tornaram obstáculos entre a alma e o Criador.

Já a santidade consiste na perfeição do Amor-caridade. Ter um Amor perfeito significa que se faz ou se busca em tudo, com total sinceridade, a Vontade de Deus; que o coração do fiel está configurado ao Sagrado Coração do Cristo, porque nós, seres humanos, por nossas próprias forças, não conseguimos alcançar essa perfeição.

Embora para alguns isso ainda pareça impossível ou muito difícil, na prática, podemos alcançar a santidade fazendo uso da Graça inicial que recebemos de Deus, por meio do Batismo, na frequência aos Sacramentos e adotando uma vida de oração, ascese e serviço. Por meio dessa busca, nesse processo, Deus vai nos concedendo cada vez mais Graça, aumentando em nós o Amor-caridade, purificando e fortalecendo o nosso espírito.

A Constituição Dogmática Lumen Gentium, no capítulo 42, fala dos meios pelos quais podemos alcançá-la:

"Deus é Caridade, e quem permanece na Caridade permanece em Deus, e Deus nele» (1 Jo 4,16). Ora, Deus difundiu a sua Caridade nos nossos corações, por meio do Espírito Santo, que nos foi dado (cf. Rom 5,5)."

Vemos que Deus nos dá este imenso Dom a todos, por meio do Batismo, na Graça e no chamamento para a santidade. Continua a Constituição:

“Sendo assim, o primeiro e mais necessário Dom é a Caridade, com que amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor d'Ele.”

Ou seja, o mais importante é amar a Deus e amar o próximo, por Amor a Deus. Você recebeu o Batismo, e no Batismo o Espírito Santo e a Graça divina para a sua salvação, portanto você é capaz disso.

Neste ponto a pergunta que muitos se fazem é: sendo assim, porque continuamos tão divididos entre Deus e o mundo, e mesmo aqueles que amam a Deus apegam-se também a tantas outras coisas temporais e fúteis, deixando muitas vezes a prática das virtudes cristãs para segundo, terceiro ou quarto plano em suas vidas?

Isso acontece porque o Dom que recebemos inicialmente de Deus precisa ser desenvolvido, precisa da nossa participação e da nossa escolha pessoal, já que o SENHOR não escraviza ninguém. A Constituição, a partir daqui, elabora uma lista de coisas que o fiel católico deve buscar para alcançar a santidade, que recebemos como semente. Se observarmos bem, veremos que estão aí listados sete pontos, sete chaves para alcançarmos a santidade, e são bem claros, simples de se compreender:

“Para que esta Caridade, como boa semente, cresça e frutifique na alma, cada fiel deve (1)ouvir de bom grado a palavra de Deus, e (2)cumprir, com a ajuda da Graça, a Sua Vontade,(3) participar frequentemente nos Sacramentos, sobretudo na Eucaristia, e nas funções sagradas, (4) dando-se continuamente à oração,(5) à abnegação de si mesmo, (6) ao serviço efetivo aos seus irmãos e (7) a toda a espécie de virtude; pois a caridade, vínculo da perfeição e plenitude da Lei (cf. Col. 3,14; Rom. 13,10), é que dirige todos os meios de santificação, os informa e leva a seu fim. É, pois, pela Caridade para com Deus e o próximo que se caracteriza o verdadeiro discípulo de Cristo.”

** Observações: a "abnegação de si mesmo" é a prática das penitências, dos jejuns, da mortificação... Todos meios de humildade e para o desapego das coisas do mundo. O "serviço efetivo aos seus irmãos" trata, evidentemente, da prática da caridade. Cada cristão tem por obrigação servir aos seus irmãos, vendo Cristo neles!

Completa-se aqui uma definição bastante clara de santidade, de uma realidade bastante concreta. É o santo Amor que vai fazendo com que dentro de nós sejam aos poucos como que "queimados" os nossos pecados. Depois, com a prática e a persistência, vão se manifestando e surgindo em nós os Dons do Espírito Santo, e aí começamos a agir de maneira sobrenatural. Sim, ao atingir determinados estágios de santidade, olhando para trás, o fiel vê que vive uma realidade que, para ele, alguns anos antes, seria impossível!

Tal é a santidade: um projeto de vida, e um projeto possível. Olhemos para o exemplo dos grandes santos! Vemos que, infelizmente, nos últimos tempos, os cristãos vêm meio que “barateando” a ideia do que é ser santo. Vem-se pregando que santo é apenas uma pessoa que tem virtudes humanas e boa vontade, e mais nada. Mas não é apenas isso. O verdadeiro santo não só tem as virtudes que vem de Deus (Teologais: Fé Esperança e Caridade), que lhe permitem entregar-se a Cristo, como até as suas virtudes humanas vão recebendo uma infusão da Graça divina, que por sua vez vai transformando a vida daquela pessoa de modo que os Sete Dons do Espírito Santo vão se manifestando cada vez mais fortemente, até chegar ao ponto em que ela passa a viver, - já aqui neste mundo, - as Bem-aventuranças. Torna-se um outro Cristo no mundo, uma fonte de Água Viva para os que têm sede, e como uma frondosa árvore frutífera, atrai os famintos e os que procuram por uma sombra refrescante.

É por isso que o Evangelho da Solenidade de Todos os Santos trata das Bem-aventuranças. Porque a Igreja crê que os santos vivem as Bem-aventuranças em plenitude, - e isso pode acontecer já aqui nesta Terra. - A vivência das Bem-aventuranças é o sinal claro de quem realmente atingiu a santidade. Que cada um renove suas esperanças de cumprir a sua vocação cristã e viver a santidade, a cada momento, para um dia alcançar a Glória Celeste e viver a felicidade plena no Céu. Amém!


"Naquele tempo, vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los:

Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.

Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados.

Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.

Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.

Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.

Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus!

Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. 

Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos Céus!"

(Evangelho segundo S. Mateus, 5, 1-12a)

_______
** Baseado na homilia da Solenidade de Todos os Santos de Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Jr., disponível em audio em
http://padrepauloricardo.org/episodios/solenidade-de-todos-os-santos

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