Pular para o conteúdo principal

O que realmente é a "sociedade"


456-sociedade.jpgO ser humano nasce em um ambiente socialmente organizado. Somente nesse sentido é que podemos aceitar quando se diz que a sociedade — lógica e historicamente — antecede o indivíduo. Com qualquer outro significado, este dito torna-se sem sentido ou absurdo. O indivíduo vive e age em sociedade. Mas a sociedade não é mais do que essa combinação de esforços individuais.
A sociedade em si não existe, a não ser por meio das ações dos indivíduos. É uma ilusão imaginá-la fora do âmbito das ações individuais. Falar de uma existência autônoma e independente da sociedade, de sua vida, sua alma e suas ações, é uma metáfora que pode facilmente conduzir a erros grosseiros.
É inútil perguntar se é a sociedade ou o indivíduo o que deve ser considerado como fim supremo, e se os interesses da sociedade devem ser subordinados aos do indivíduo ou vice-versa.  Ação é sempre ação de indivíduos. O elemento social ou relativo à sociedade é a orientação específica das ações individuais. A categoriafim só tem sentido quando referida à ação.
A teologia e a metafísica da história podem discutir os fins da sociedade e os desígnios que Deus pretende realizar no que concerne à sociedade, da mesma maneira que discutem a razão de ser de todas as outras partes do universo. Para a ciência, que é inseparável da razão — instrumento evidentemente inadequado para tratar de problemas desse tipo —, seria inútil envolver-se em especulações desta natureza.
Sociedade é ação concertada, cooperação.
A sociedade é a consequência do comportamento propositado e consciente. Isso não significa que os indivíduos tenham firmado contratos por meio dos quais teria sido formada a sociedade.  As ações que deram origem à cooperação social, e que diariamente se renovam, visavam apenas à cooperação e à ajuda mútua, a fim de atingir objetivos específicos e individuais.  Esse complexo de relações mútuas criadas por tais ações concertadas é o que se denomina sociedade.  Sociedade é divisão de trabalho e combinação de esforços.  Por meio da colaboração e da divisão do trabalho, o homem substitui uma existência isolada — ainda que apenas imaginável — pela existência conjunta. Por ser um animal que age, o homem torna-se um animal social.
No quadro da cooperação social podem emergir, entre os membros da sociedade, sentimentos de simpatia e amizade e uma sensação de comunidade. Esses sentimentos são a fonte, para o homem, das mais agradáveis e sublimes experiências. Elevam a espécie animal homem às alturas de uma existência realmente humana; são o mais precioso adorno da vida.  Entretanto, esses sentimentos são fruto da cooperação social e só vicejam no seu quadro; não precederam o estabelecimento de relações sociais e não são as sementes de onde estas germinam.
Os fatos fundamentais que fizeram existir a cooperação, a sociedade e a civilização, e que transformaram o animal homem em um ser humano, é o fato de que o trabalho efetuado valendo-se da divisão do trabalho é mais produtivo que o trabalho solitário, e o fato de que a razão humana é capaz de perceber esta verdade.  Não fosse por isso, os homens permaneceriam sempre inimigos mortais uns dos outros, rivais irreconciliáveis nos seus esforços para assegurar uma parte dos escassos recursos que a natureza fornece como meio de subsistência. Cada homem seria forçado a ver todos os outros como seus inimigos; seu intenso desejo de satisfazer seus próprios apetites o conduziria a um conflito implacável com seus vizinhos.  Nenhum sentimento de simpatia poderia florescer em tais condições.
Alguns sociólogos têm afirmado que o fato subjetivo original e elementar na sociedade é uma "consciência da espécie".  Outros sustentam que não haveria sistemas sociais se não houvesse um "senso de comunidade ou de propriedade comum". Podemos concordar, desde que estes termos um pouco vagos e ambíguos sejam corretamente interpretados. Podemos chamar de consciência da espécie, senso de comunidade ou senso de propriedade comum, o reconhecimento do fato de que todos os outros seres humanos são virtuais colaboradores na luta pela sobrevivência, pois são capazes de reconhecer os benefícios mútuos da cooperação, ao passo que os animais não têm essa faculdade.
Entretanto, não devemos esquecer que são os dois fatos essenciais acima mencionados que fazem existir tal consciência ou tal senso de existência.  Em um mundo hipotético, no qual a divisão do trabalho não aumentasse a produtividade, não haveria sociedade. Não haveria qualquer sentimento de benevolência e de boa vontade.
O princípio da divisão do trabalho é um dos grandes princípios básicos da transformação cósmica e da mudança evolucionária. Os biologistas tinham razão em tomar emprestado da filosofia social o conceito de divisão do trabalho e em adaptá-lo a seu campo de investigação.
Existe divisão do trabalho entre as várias partes de qualquer organismo vivo. Mais ainda: existem, no reino animal, colônias integradas por seres que colaboram entre si; tais entidades, formadas, por exemplo, por formigas ou abelhas, costumam ser chamadas, metaforicamente, de "sociedades animais". Mas não devemos jamais nos esquecer de que o traço característico da sociedade humana é a cooperação propositada; a sociedade é fruto da ação humana, isto é, apresenta um esforço consciente para a realização de fins.
Nenhum elemento desse gênero está presente, ao que se saiba, nos processos que resultaram no surgimento dos sistemas estruturais e funcionais de plantas e de corpos animais ou no funcionamento das sociedades de formigas, abelhas e vespas. A sociedade humana é um fenômeno intelectual e espiritual.  É a consequência da utilização deliberada de uma lei universal que rege a evolução cósmica: a maior produtividade gerada pela divisão do trabalho.
Como em todos os casos de ação, o reconhecimento das leis da natureza é colocado a serviço dos esforços do homem desejoso de melhorar suas condições de vida.
A cooperação humana
A cooperação humana é diferente das atividades que ocorreram sob as condições pré-humanas no reino animal e daquelas que ocorriam entre pessoas ou grupos isolados durante as eras primitivas.  A faculdade humana específica que distingue o homem do animal é a cooperação.  Os homens cooperam.  Isso significa que, em suas atividades, eles preveem que as atividades incorridas por outras pessoas irão produzir certas coisas que possibilitarão os resultados que eles objetivam com seu próprio trabalho.
O mercado é uma situação, ou um conjunto de situações, em que eu dou algo para você a fim de receber em troca algo de você.  Um ditado em latim, há mais de 2.000 anos, já apresentava a melhor descrição do mercado: do ut des — dou algo para que assim você também dê.  Eu contribuo com algo de modo que você contribua com algo mais.  Com base nisso desenvolveu-se a sociedade humana, o mercado, a cooperação pacífica entre os indivíduos.  E cooperação social significa divisão do trabalho.
Os vários membros, os vários indivíduos de uma sociedade não vivem suas próprias vidas sem qualquer ligação ou conexão com outros indivíduos.  Graças à divisão do trabalho, estamos constantemente associados a terceiros: trabalhando para eles e recebendo e consumindo o que eles produziram para nós.  Como resultado, temos uma economia baseada nas trocas e que consiste totalmente na cooperação entre vários indivíduos.  Todo mundo produz, não apenas para si próprio, mas para outras pessoas também, na expectativa de que essas outras pessoas irão produzir para ele.  Esse sistema requer atos de troca.
A cooperação pacífica, as conquistas pacíficas dos homens, são todas efetuadas e realizadas no mercado. Cooperação necessariamente significa que as pessoas estão trocando serviços e bens, sendo estes últimos os produtos dos serviços.  São essas trocas que criam o mercado.  O mercado representa precisamente a liberdade de as pessoas produzirem, consumirem e determinarem o que deve ser produzido, em qual quantidade, com qual qualidade e para quem esses produtos devem ir.  Um sistema livre sem um mercado é impossível.  O mercado é a representação prática desse sistema livre.
Tem-se aquela ideia de que as instituições criadas pelo homem são (1) o mercado, que é a livre troca entre indivíduos, e (2) o governo, uma instituição que, na mente de muitas pessoas, é algo superior ao mercado e poderia existir na ausência do mercado.  A verdade é que o governo — que representa necessariamente o recurso à violência, pois não passa de um poder policial com seu correspondente aparato de compulsão e coerção — não pode produzir nada.  Tudo que é produzido de bom é produzido somente pelas atividades desempenhadas por indivíduos, e é disponibilizado no mercado com o intuito de se receber algo benéfico em troca.
É importante lembrar que tudo o que é feito, tudo que o homem já fez, tudo que a sociedade já fez, é o resultado da cooperação e dos acordos voluntários.  A cooperação social entre os homens — e isso significa o mercado — é o que cria a civilização.  E foi essa cooperação que permitiu todas as melhorias ocorridas nas condições humanas, melhorias essas que podemos usufruir hoje.

Ludwig von Mises  foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico.  Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.  Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico.  Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Símbolos e Significados

A palavra "símbolo" é derivada do grego antigo  symballein , que significa agregar. Seu uso figurado originou-se no costume de quebrar um bloco de argila para marcar o término de um contrato ou acordo: cada parte do acordo ficaria com um dos pedaços e, assim, quando juntassem os pedaços novamente, eles poderiam se encaixar como um quebra-cabeça. Os pedaços, cada um identificando uma das pessoas envolvidas, eram conhecidos como  symbola.  Portanto, um símbolo não representa somente algo, mas também sugere "algo" que está faltando, uma parte invisível que é necessário para alcançar a conclusão ou a totalidade. Consciente ou inconscientemente, o símbolo carrega o sentido de unir as coisas para criar algo mair do que a soma das partes, como nuanças de significado que resultam em uma ideia complexa. Longe de objetivar ser apologética, a seguinte relação de símbolos tem por objetivo apenas demonstrar o significado de cada um para a cultura ou religião que os adotou.

Como se constrói uma farsa?

26 de maio de 2013, a França produziu um dos acontecimentos mais emblemáticos e históricos deste século. Pacificamente, milhares de franceses, mais de um milhão, segundo os organizadores, marcharam pelas ruas da capital em defesa da família e do casamento. Jovens, crianças, idosos, homens e mulheres, famílias inteiras, caminharam sob um clima amistoso, contrariando os "conselhos" do ministro do interior, Manuel Valls[1]. Voltando no tempo, lá no já longínquo agosto de 2012, e comparando a situação de então com o que se viu ontem, podemos afirmar, sem dúvida nenhuma, que a França despertou, acordou de sua letargia.  E o que provocou este despertar? Com a vitória do socialista François Hollande para a presidência, foi colocada em implementação por sua ministra da Justiça, Christiane Taubira,  a guardiã dos selos, como se diz na França, uma "mudança de civilização"[2], que tem como norte a destruição dos últimos resquícios das tradições qu

Pai Nosso explicado

Pai Nosso - Um dia, em certo lugar, Jesus rezava. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou a seus discípulos”. È em resposta a este pedido que o Senhor confia a seus discípulos e à sua Igreja a oração cristã fundamental, o  Pai-Nosso. Pai Nosso que estais no céu... - Se rezamos verdadeiramente ao  "Nosso Pai" , saímos do individualismo, pois o Amor que acolhemos nos liberta  (do individualismo).  O  "nosso"  do início da Oração do Senhor, como o "nós" dos quatro últimos pedidos, não exclui ninguém. Para que seja dito em verdade, nossas divisões e oposições devem ser superadas. É com razão que estas palavras "Pai Nosso que estais no céu" provêm do coração dos justos, onde Deus habita como que em seu templo. Por elas também o que reza desejará ver morar em si aquele que ele invoca. Os sete pedidos - Depois de nos ter posto na presença de Deus, nosso Pai, para adorá-lo