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Simplicidade, perenidade e... cerveja

Cerveja, flores de lúpulo e espigas de trigo e cevada.jpg
A simplicidade e candura da "Lei da Pureza" não podem deixar de chamar a atenção
nos nossos dias, tão pródigos em conservantes,estabilizantes e demais aditivos

Transmitida e respeitada de geração em geração, a "Lei da Pureza", promulgada em 1516, tornou-se condição indispensável para a preparação de uma cerveja arquetípica.

Diác. Antonio Jakoš Ilija, EP
Uma das mais curiosas características das coisas ditas modernas é que depois de alguns anos - quando não meses ou dias - deixam de ser modernas... Após uma existência agitada e efêmera, acabam por ser descartadas ou esquecidas quase com tanto ímpeto como foram aceitas. Assim, muito daquilo que faz 50 anos era considerado a fina ponta da modernidade hoje é qualificado de retrógrado. Retrógrado, note-se, e não antigo, pois o antigo possui valores perenes que o tempo não consegue destruir.
O simples e o perene
Não faltam, entretanto, ao nosso redor exemplos de coisas que permanecem após terem sido acrisoladas pelo passar dos séculos. Elas costumam ser confiáveis, estáveis e, sobretudo, simples. Dispensando enfeites supérfluos, possuem características próprias que pairam acima dos aspectos meramente utilitários.
Ponte de Trajano, Alcântara (Espanha).jpg
Depois de terem enfrentado séculos de guerras e
tormentas, certas pontes romanas continuam 
em pé com invejável solidez
Consideremos, a título de exemplo, certas construções romanas, em particular algumas pontes. Elas são despojadas, robustas e veneráveis na sua longeva autenticidade. Depois de terem enfrentado guerras e tormentas durante dezenas de séculos, continuam em pé com invejável solidez, suportando altaneiras o peso e as vibrações dos atuais veículos a motor, inimagináveis para os cidadãos do Império.

Esta relação entre o simples e o perene não é fortuita, mas sim um reflexo do Ser por excelência, que São Tomás de Aquino define na Suma Teológica como "totalmente simples".1 Estas considerações vêm-nos ao espírito a propósito de um fato sem vínculo aparente com elas: a fabricação da cerveja.
Um país com tradição cervejeira
O surgimento desta bebida parece ter acontecido de forma concomitante em diversas partes do mundo antigo. Encontraram-se vestígios de sua preparação na antiga Mesopotâmia e no Egito. Os romanos a chamavam de cerevisia e os celtas de korma. Na Idade Média existiam variedades com um teor alcoólico bastante baixo, para o consumo inclusive de crianças.
Hoje, ela é uma das bebidas mais consumidas no mundo e faz parte da cultura de muitos povos. Mas em poucos deles se fundiu de maneira mais íntima e harmônica com a sociedade e suas tradições do que no mundo germânico, mais especificamente a Baviera. Bebida para todas as idades e classes sociais, era preparada para crianças, adultos e anciãos, camponeses, estadistas, nobres e clérigos.
As abadias e conventos da região costumavam fabricar cerveja para consumo próprio, variando a forma de preparo segundo os diversos tempos do ano. Assim, por exemplo, a Paulaner Salvator era elaborada pela Ordem dos Mínimos - Paulaner Orden, em alemão - com vistas ao jejum feito pelos monges durante a oitava da festa do Fundador. Como essa bebida, embora muito nutritiva, não quebrava o preceito, seu consumo ajudava a sustentar os religiosos nos períodos de penitência.
Muitos mosteiros beneditinos também produziam sua própria cerveja, e não apenas para consumo próprio. A abadia de Weltenburg, situada nas margens bávaras do Danúbio, é a que possui a mais antiga destilaria, fundada em 1050. Desde então, vem ela produzindo sem interrupção a mesma variedade de cerveja, e transcorrido um milênio, sua qualidade por certo não deixa a desejar, pois consta ter sido fornecida regularmente para a mesa de Bento XVI.
O Decreto de Pureza de 1516
Ora, para produzir uma cerveja como a de Weltenburg, os ingredientes não podiam ser mais simples: lúpulo, malte e água.2 Quase cinco séculos depois, esses três elementos foram sancionados num decreto promulgado em 23 de abril de 1516 pelo duque Guilherme IV da Baviera: o Reinheitsgebot ou "Lei da Pureza". Além de estipular os preços do líquido dourado entre as festas de São Jorge e de São Miguel, prescreve o decreto:
"Desejamos enfatizar que no futuro em todas as cidades, nos mercados e no país, os únicos ingredientes usados para a fabricação da cerveja devem ser lúpulo, malte e água. Qualquer um que negligenciar, desrespeitar ou transgredir estas determinações, será punido pelas autoridades da corte que confiscarão tais barris de cerveja, sem falta".
A simplicidade e candura desse dispositivo legal não podem deixar de chamar a atenção nos nossos dias, tão pródigos em conservantes, estabilizantes, corantes, espessantes, acidulantes, aromas artificiais e demais aditivos, usados às vezes em tais proporções que tornam difícil distinguir o sabor real do que está sendo degustado.
Transmitido e respeitado de geração em geração, o procedimento de fabricação da cerveja alemã, muitas vezes artesanal, tem se imposto ao longo dos tempos como condição indispensável para a preparação de uma cerveja arquetípica. A ponto de muitas embalagens ostentarem com orgulho a indicação: "Fabricada de acordo com a Lei de Pureza de 1516".
Patrimônio da humanidade
No fim do ano passado, a Associação de Cervejeiros Alemães pediu à UNESCO o reconhecimento da cerveja assim fabricada como patrimônio da humanidade. A decisão poderá ser tomada em 2016, quando se comemorará o V Centenário da promulgação do mencionado Decreto.
Alguns produtores, inclusive alemães, têm objetado que tal lei condena à imobilidade algo que poderia ser aperfeiçoado. Em suma: ela é retrógrada. Mas basta analisar a questão com um pouco de isenção de ânimo para constatar quão errado é esse posicionamento. Atualmente existem, por exemplo na Bélgica, cervejas excelentes feitas segundo outros métodos que acrescentam ingredientes tão pouco "ortodoxos" como a cereja.
Não se trata de proibir os aprimoramentos, mas sim de proteger da voragem moderna uma tradição venerável que, queiramos ou não, está na essência de uma das mais populares bebidas dos nossos dias. ² (Revista Arautos do Evangelho, Fevereiro/2014, n. 146, p. 24-25)

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