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"Ainda hoje estarás comigo no Paraíso" – Um estudo sobre Lucas 23,43



UM LEITOR anônimo enviou-nos algumas questões interessantes, no seguinte comentário ao post "A morte, o Juízo Particular e o Juízo Final":

"O texto é bem esclarecedor, como todos os artigos deste blog. Parabéns pelo excelente trabalho. Porém, gostaria que, se possível, uma dúvida minha fosse sanada, relacionada à uma objeção apresentada ontem por um protestante. Em diversos artigos postados em sites católicos, notei que o relato do "bom ladrão", situado em Lucas 23,39-43, é utilizado como prova de que a alma permanece inconsciente após a morte. Porém, me foram apresentadas três objeções:

* A Bíblia diz que Jesus estabelecerá o seu Reino no fim dos tempos. Portanto, o relato é uma promessa futura, e não imediata.

* O Evangelho narra que os soldados quebraram as pernas dos malfeitores, mas não as de Jesus, pois ele já estava morto. Portanto, o ladrão estava ainda vivo, o que atesta que tal promessa ocorrerá no futuro somente.

* Jesus ressuscitou ao terceiro dia, e diz que não havia subido ao Pai. Portanto, seria impossível que o termo "hoje" fosse empregado no sentido defendido pelos católicos.
Gostaria de uma resposta. Obrigado!"

Em primeiro lugar, agradecemos pelas gentis e encorajadoras palavras, anônimo. Nosso único objetivo com este trabalho é o de contribuir, não na medida de nossas estreitas capacidades, mas pela Graça do Bom Deus, no esclarecimento da fé católica aos que a buscam.

A tradição deu ao "bom
ladrão" o nome S. Dimas
Entrando nas questões que você propõe, é no mínimo curioso, – e certamente mais do que questionável, – que essas objeções tenham partido de um protestante. Ora, são eles que fundamentam todo o conjunto de sua fé e práticas na literalidade do Texto Sagrado, e não nós, católicos. Se uma passagem bíblica trouxesse algum embaraço, alguma contradição com outras passagens bíblicas, isto seria um entrave muito maior para a fé deles do que para a nossa. O católico não se deixa perturbar com passagens bíblicas difíceis, porque sua fé não se fundamenta exclusivamente na interpretação particular da Escritura, mas naqueles três pilares fundamentais: Magistério, Tradição e Escritura. Sendo assim, temos sempre a que recorrer quando encontramos dúvidas e obstáculos no prosseguimento do Caminho (Cristo), e não ficamos reféns da nossa própria compreensão. – Nós, que somos tão fracos e falhos. – Temos, antes de tudo, a orientação da Igreja, que é Corpo de Cristo, Coluna e Sustentáculo da Verdade.

Isto posto, devo dizer que nunca estudei nada diretamente relacionado a estes temas muito específicos que você propõe. Em todo caso, preciso dizer que não vejo aí dificuldade alguma, pois o que estudei e aprendi é mais que suficiente para dissolver os aparentes problemas. Vejamos então as suas questões, uma por vez.

* A Bíblia diz que Jesus estabelecerá o seu Reino no fim dos tempos. Portanto, o relato é uma promessa futura, e não imediata.

Como eu sempre digo por aqui, e como todo católico deve saber (e ter sempre essa resposta 'na ponta da língua', para a dar a quem questioná-lo), as Sagradas Escrituras precisam ser compreendidas no todo, no seu conjunto, e este conjunto precisa ser coeso. – Se assim não fosse, nós não poderíamos crer nelas como divinamente inspiradas, pois o Espírito de Deus não poderia dizer algo numa passagem e contrariá-lo em outra.

Muito bem. A partir daí, é sempre muito fácil responder ao protestante, que acena com uma passagem bíblica que lhe parece dizer uma coisa, com outra passagem bíblica que demonstra uma realidade diferente. Por isso é que devemos, enquanto católicos, "criarmos vergonha na cara" e começarmos a estudar mais a Sagrada Escritura, e com mais empenho e interesse. O católico comum, via de regra, parece ter pouco interesse na compreensão da própria fé, atendo-se a uma religiosidade mais prática e mais afeita ao sentimento que à razão. A razão, entretanto, não é estranha à fé, porque procede da mesma Verdade Eterna (Deus), como ensinou o gigante da fé Santo Tomás de Aquino. Fé e razão, portanto, não devem andar separadas: são como as duas "pernas" da alma no Caminho da salvação. Se usamos apenas uma das duas pernas, vamos mancando neste longo Caminho, e nosso caminhar será lento... Certamente nos atrasaremos, se é que conseguiremos chegar ao seu final.

Abro aqui parênteses para uma conclamação: estudemos mais a Bíblia, meus irmãos católicos! Se os "cursos livres" oferecidos pelas nossas paróquias e até mesmo as publicações populares atuais, em boa parte andam fracos e até inconsistentes com a autêntica fé católica, pesquisem por si mesmos, procurem ajuda, se esforcem um pouco. Um primeiro bom passo na direção certa, que eu aconselho, é adquirir um exemplar da Bíblia de Jerusalém e ler um capítulo por dia (ou um a cada dois ou três dias, ou pelo menos um por semana, conforme a disponibilidade de cada um), lendo também e com muita atenção as introduções e as notas de rodapé; compre um caderno, faça anotações, consulte o dicionário, aprofunde a pesquisa na internet... E reze com fé, amor e confiança antes de cada sessão de estudos, suplicando a Luz do Espírito Santo. – Garanto que isto será de mais valia do que a conclusão de muitos cursos que hoje se oferecem por aí. Acredite: com boa vontade se progride muito!

Retomando a linha de raciocínio nesta resposta, eu desafiaria este protestante que o questiona, anônimo, a mostrar onde e quando é que Jesus falou, assim tão categoricamente, do Reino dos Céus como um evento futuro. Esta é uma interpretação particular dada como certa, já que os Evangelhos dizem muito claramente:

"Interrogado pelos fariseus sobre quando havia de vir o Reino de Deus, (Jesus) respondeu-lhes, e disse: O Reino de Deus não vem com aparência exterior. Nem dirão: 'Ei-lo aqui', ou: 'Ei-lo ali'; porque eis que o Reino de Deus está entre vós'." (Lc 17, 20-21)

O Senhor não diz que o Reino de Deus virá num futuro distante, mas sim que já está presente, como uma realidade já atuante. Ainda mais interessante é lembrar que outra tradução perfeitamente possível, e usada em algumas versões, para o texto original, no grego (ἐντὸς  ὑμῶν) é: "O Reino de Deus está dentro de vós".

Vemos então que esta primeira contestação parte de uma confusão entre o Reino de Deus ou Reino dos Céus, propriamente dito, e o advento do Dia do Juízo, quando o Reino de Deus será definitivamente consumado e consolidado, para todas as almas, para sempre. O Reino de Deus é uma realidade; o dia do Juízo Final, no qual o mesmo Reino se tornará tudo, em todos os vivos, é outra.

* O Evangelho narra que os soldados quebraram as pernas dos malfeitores, mas não as de Jesus, pois ele já estava morto. Portanto, o ladrão estava ainda vivo, o que atesta que tal promessa ocorrerá no futuro somente.

Quanto a esta segunda objeção, com toda a honestidade e humildade, devo dizer que não merece sequer ser considerada, porque é totalmente desprovida de sentido. Quem foi que disse que, para que a promessa de Cristo fosse cumprida, os dois (o Senhor e o ladrão) teriam que morrer juntos, no mesmo instante? Tolice pura e mais nada.

* Jesus ressuscitou ao terceiro dia, e diz que não havia subido ao Pai. Portanto, seria impossível que o termo "hoje" fosse empregado no sentido defendido pelos católicos.

Quanto a esta terceira objeção, creio que já está bem respondida nesta mesma postagem "A morte, o Juízo Particular e o Juízo Final". Ora, como visto ali, o tempo de Deus não é o nosso tempo e, como dissemos no seu último parágrafo, a partir da perspectiva da eternidade não existe ondem e amanhã, mas apenas o eterno "hoje", o eterno "agora". Aliás, é exatamente esta perspectiva que explica e torna possível a existência do inferno para a nossa razão: por não haver "amanhã" é que aquelas almas jamais alcançarão o perdão. Não é que sofrerão "para sempre", numa sucessão de dias e noites, sem jamais obter a misericórdia divina. É que por terem adentrado a eternidade como inimigas de Deus, por sua decisão consciente, aquelas almas permanecerão nesta mesma condição no infinito "hoje" que é a eternidade, num lugar ou realidade onde não há tempo e, por isso mesmo, para elas não haverá a esperança de um amanhã melhor.

Ao contrário, para os que merecerem o Céu, não haverá a possibilidade de novas tentações e quedas num "amanhã" incerto. Viveremos (valha-nos Deus!) numa realidade perene de bem-aventurança sem fim, na plenitude do Amor divino.

Assim, o "ainda hoje" de Jesus Cristo, na minha compreensão, demonstra claramente que, logo após a morte física, o "bom ladrão" e Jesus estão juntos, sim, em um nível e numa existência que agora não podemos compreender. Após esta vida, não estaremos mais limitados pela nossa atual experiência e noção do tempo (ontem, hoje, amanhã), mas viveremos sempre no agora.

Rezamos para que esta reposta possa ajudar, a tantos quantos queira Deus, a compreender algo de sua Glória infinita.

Em Cristo, com a Virgem Santíssima

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